sexta-feira, novembro 02, 2007

Minimalismo e os Luádios

Os assuntos acabam por se ligar e ramificar-se e descobrimos que talvez se relacionem, todos, entre si. No meu primeiro post falei sobre La cathédrale engloutie e, por ser esta peça uma das minhas influências principais, as minhas influências principais acabaram por se tornar o assunto do que venho escrevendo.

E parece sempre faltar a explicação de mais alguma coisa para que se tenha um quadro um pouco mais completo. E coisas diferentes umas das outras vêm se juntar. De modo que, no fim do meu segundo post, citei outras influências e, entre elas, o minimalismo. Vejo-me, então, forçado a colocar Debussy e o minimalismo juntos, embora a partir de agora este último ganhe mais destaque pelo simples fato de que ser um minimalista (ou pós-minimalista) faz sentido, mas ser um “debussysta” não – e imagino aqui um “debussysta” como alguém que tenta imitar ou copiar o estilo do grande compositor. Ele é, sim, um grande modelo para mim, um sublime modelo, poderia dizer, e o considero um mestre, sem dúvida.

Foi em 1997, mesma época em que havia há pouco começado a estudar La cathédrale engloutie, que descobri a existência da música minimalista. Foi por meio do programa Música discreta, na Rádio Cultura de São Paulo. Eu o ouvia à meia-noite das terças-feiras, no escuro, como convinha. Foi uma descoberta incrível. Se naquela peça de Debussy eu via um tempo diferente, ainda mais diferente via o tempo destas composições transmitidas pelo programa. Fiquei muito impressionado. O tempo ia embora, não se pensava mais nele, não se pensava mais em nada. Vários compositores eram apresentados, mas o único cujo nome guardei, na época, foi Philip Glass. Hoje sei da existência e dos nomes dos outros, mas na época não os memorizei. De Glass fiquei muito impressionado com a Música em Doze Partes [Music in twelve parts].

Procuro pensar aqui no que me lembro, não no que li depois: a Música em doze partes era bem longa; depois de um bom tempo, em meio à peça, o locutor dizia: “Música em doze partes... parte três...”. Tinha um prazer incrível em ouvir aquela música. Poucos meses antes eu tinha conhecido as ilhas de Angra dos Reis, e o mar era a imagem que, dentro da minha mente, acompanhava a audição daquela obra.

Agora, sim, o que li depois. Philip Glass escreveu uma obra chamada Música em doze partes porque havia doze partes instrumentais. Ao mostrá-la a alguém, foi-lhe dito: “e as outras onze?”. Assim lhe ocorreu a idéia de realmente escrever outras onze seções.

No mesmo programa lembro-me de uma vez ter sido mostrada uma obra que incluía, em sua instrumentação, piano preparado, o que me leva a crer que tenha sido Tabula Rasa, de Arvo Pärt. Este compositor também entrará aqui na nossa história, embora não neste post. Eu só o conheci depois, mais ou menos um ano mais tarde.

Entretanto levou um tempo para que eu “assimilasse” o minimalismo para efeitos da minha própria composição. Pouco depois de conhecer esta linguagem, por assim dizer, ainda escrevi um Trio de Cordas intensamente atonal e intensamente politonal, diria até que no limite do cacofônico em certos momentos (penso em algumas das partes politonais, na verdade, meu atonalismo não soava assim tão mal). Isto foi em 1997. No mesmo ano, escrevi as Gravuras, para piano (a princípio eram seis peças, depois sete). São peças muito curtas (as mais longas têm um minuto e pouco) que fazem uso de universos harmônicos variados lado a lado (diatonismo, tonalismo, atonalismo, modulações repentinas) e também de estados de espírito variados, mesmo dentro da mesma peça.

No ano seguinte escrevi também uma Toccata para piano (que nada tem das características tradicionais do gênero toccata; trata-se de uma peça em cinco partes, como se fossem as Gravuras, mas tocadas sem interrupção) que junta alguns materiais escritos livremente com atonalismo livre, algum dodecafonismo e esquemas mais ou menos seriais não-dodecafônicos. Há numerosos intervalos pontiagudos, muita dissonância e um pouco de violência.

Chegou Novembro deste ano de que falo, 1998, e comecei a composição de uma série de peças para piano em que finalmente surgiu alguma influência de música repetitiva e, ao mesmo tempo de Debussy também. São os Luádios, dez peças para piano. Os seus títulos, na partitura, são colocados no fim, em vassalagem e reverência ao grande francês.

Mesmo nesta coleção há alguns trechos atonais, mas já são muito diferentes. Eles se encontram principalmente na terceira peça (Luzes vermelhas e alaranjadas) e na quinta peça (Lamentos). No primeiro caso me pareceu muito apropriado usar as tradicionais dissonâncias de sétima maior e nona menor para exprimir a sensação de raios vermelhos e alaranjados do Sol chegando os olhos e os fazendo quase fechar.

A segunda peça (Movimento das folhas das árvores) usa desde o início harpejos bitonais, típicos de Debussy. No início aparecem sol maior e mi bemol menor, e o último acorde da composição é sol maior (na mão esquerda) e mi bemol maior (na mão direita). Por algum motivo associei este acorde à cor verde (das árvores), embora totalmente desprovido de sinestesia; muito provavelmente uma associação mais simbólica. Os harpejos, por outro lado, são meu meio de evocar o movimento das folhas das árvores provocado pelo vento.

Por escrever, nesta segunda peça, cada nota dos harpejos separadamente, usei nelas muitas fusas e mesmo semifusas, o que não é comum na minha música. A fórmula de compasso é 4/8. É uma exceção nos Luádios, que de resto usa fórmulas como 9/4, 4/2, 3/1 e 1/1, em que, também pela lentidão dos andamentos, predominam as figuras de maior valor.

A oitava peça, Amor, é inteiramente constituída de harpejos. Não é, entretanto, minimalista. Existe uma idéia de progressão harmônica nela inteira, o que a faz não ser minimalista não obstante seu caráter repetitivo. Esta distinção é muito importante, já que o minimalismo em si se caracteriza por algum processo de repetição e mutação gradual das figuras.

Por este motivo costumo considerar que a sétima peça, sim, se aproxima mais do minimalismo; seu nome é Estrelas e se centra nitidamente em mi, em sua primeira metade usei um modo que parece mais ser mi frígio, embora use a tríade do primeiro grau como acorde maior; e, na segunda, aparece o quinto grau como menor, o que caracteriza um mixolídio.

Na primeira parte alternam-se dois acordes, lentos e sustentados. O primeiro é mi maior com a quinta fá-dó no baixo; o segundo é o mesmo mi maior com a quinta mi-si. Estes dois acordes se repetem várias vezes, entremeados por breves intervenções, chamados, no agudo, sempre com as mesmas notas, com algumas variações rítmicas. Na segunda parte há apenas grandes harpejos, do extremo grave ao extremo agudo do piano, enunciando os acordes de mi maior, lá maior, sol sustenido menor e si menor. Esta peça poderia ainda ser considerada “minimalista” sob o ponto de vista de “material mínimo”, ainda que não utilize processos como os de Glass e Reich (nos anos 60) nem técnicas derivadas deles.

Das dez peças três se chamam Lua (a primeira, a quarta e a nona), devidamente acompanhadas de algarismos romanos: I, II e III. Nas três uso monodias. Aqui entra de novo Debussy, de quem numerosas peças usam monodia. Em primeiro lugar, The little shepherd. Outras, ainda, são Bruyères, La fille aux cheveux de lin, Canope (em acordes), Voiles (em terças), La danse de Puck, todas para piano; e L’après-midi d’un faune, para orquestra.

Nos meus Luádios, Lua II e Lua III (quarta e nona peças) usam monodias em que o pedal fica abaixado, fazendo os sons se misturarem; gosto muito deste recurso e o utilizo desde então com muita freqüência. A meu ver é um dos “instrumentos” de que o piano é capaz. Em Lua I (primeira peça), não há pedal, mas logo antes da monodia há um ataque, em sfz, de uma tríade de fá sustenido maior, sua ressonância continua durante a melodia.

Para que vejam de modo mais organizado os nomes das peças, transcrevo-os aqui:

I. Lua I
II. Movimento das folhas das árvores
III. Luzes vermelhas e alaranjadas
IV. Lua II
V. Lamentos
VI. As sacerdotisas
VII. Estrelas
VIII. Amor
IX. Lua III
X. Consolo

A série foi escrita em aproximadamente um mês, ou talvez um pouco mais, de Novembro a Dezembro de 1998.

Vejo que duas delas ficaram sem descrição nenhuma: As sacerdotisas e Consolo. A primeira faz ouvir seis vezes sempre a mesma melodia, precedida em cada vez por um acorde um pouco diferente. Consolo, escrita em fórmula de compasso 1/1, é inteira em semibreves; no agudo se tem sempre, sempre, si-dó#, em harmonizações variadas. Seu último acorde harmoniza o dó# como um acorde de si maior com sétima maior e nona, de modo que na mão direita se tem o mesmo fá sustenido maior que inicia os Luádios.

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