domingo, novembro 04, 2007

Os Luádios

No meu texto anterior cheguei aos meus Luádios (1998). O escrito ficou um pouco cheio de referências um pouco áridas e técnicas, ainda que talvez úteis (pelo menos para mim), de modo que desejo agora abordar a série de maneira um pouco mais “poética”, por assim dizer.

Não sou lá tão afeito a inventar palavras novas, mas ao dar nome a esta série foi exatamente o que fiz. Luádios é uma junção de Lua com Prelúdios. E a Lua, como de outras milhares de obras na história da humanidade, é um tema, ou o tema, dos Luádios.

Todos eles se referem sem dúvida a cenas noturnas. Às vezes penso deles como “dez noturnos”, usando a mesma designação que nos chegou de John Field por meio de Chopin. Não acredito que meu impulso tenha sido muito diferente do de Chopin. A linguagem é outra, mas imagino que tenha sido levado a escrever estas peças por motivos parecidos que levaram o polonês a compor os seus noturnos.

O tempo passa, sim, conforme eles se sucedem, porque no segundo luádio, Movimento das folhas das árvores, ainda me parecia ser o final da tarde. E têm-se ainda Luzes vermelhas e alaranjadas, título da terceira peça. Estas luzes são luzes de um pôr-do-Sol. Sem dúvida penso num ocaso outonal, talvez invernal, que são épocas no meu gosto mais bonitas.

Mas, antes que me esqueça, a atmosfera do segundo luádio é já misteriosa, o vento é frio e faz as árvores balançarem muito.

No quarto luádio, Lua II, talvez já seja noite. A ele se seguem os Lamentos, que imagino serem vozes tristes e angustiadas no meio da noite. Lamentam-se porque lhes falta algo. E o que lhes falta é a luz do espírito, não a luz do dia, que já possuem (embora não neste momento). A noite, embora bela, faz lembrar que ainda não possuem a iluminação espiritual. Trata-se de uma época pré-cristã; o Verbo de Deus ainda não encarnou, ainda não veio trazer a salvação. Este pré-cristianismo é a época em que acontece a “cena” de todos os Luádios.

E estes lamentos indicam não só a espera angustiante pelo Messias, mas também a consciência de que ele ainda nos falta. Não existe aqui um paganismo cheio de orgias e indiferente a qualquer coisa do espírito. Fosse assim, não se lamentaria por nada.

Aos Lamentos se sucede a sexta peça, intitulada As sacerdotisas. Transcrevo aqui o que escrevi, uma vez, sobre esta composição e seu título.

Numa série para piano chamada Luádios, que escrevi em 1998, há uma peça, a sexta, chamada As sacerdotisas. Hoje este título me soa muito pagão. Já pensei em mudá-lo, e até haveria razões para fazê-lo sem trair minha própria intenção; mas agora penso desnecessário.

Trocar o título não iria contra meu propósito original porque, eu me lembro, pensei em dançarinas vestidas de branco. Devo ter escolhido “sacerdotisas” como nome provavelmente por a sua dança me haver parecido muito ritual, porque lenta e misteriosa; e lenta e misteriosa é a composição.

Tais “sacerdotisas” não oferecem sacrifício nenhum, não honram nem adoram nenhuma divindade. Elas nem mesmo são sacerdotisas. Mas o nome me agrada por evocar algo muito antigo, ancestral, cheio de mistério, um tanto primitivo. Uma espécie de idade da inocência em que ainda não se conhece a grande luz; algo como uma enigmática noite de esperança em que, entretanto, já se conhece o amor (Amor é o nome da oitava peça) e o consolo (Consolo é o nome da décima peça).

(...)

Nos Luádios eu imito meu compositor talvez favorito, Debussy, no modo de escrever os títulos de cada peça; faço-o como ele fez nos seus Prelúdios: escrevo os nomes no fim. Além disto, desconfio que As sacerdotisas seja uma descendente perdida de Danseuses de Delphes, mesmo que musicalmente elas não tenham praticamente nada a ver. Deve ser mais pelas dançarinas mesmo.

Por falar na parte musical, As sacerdotisas dura pouco mais de um minuto e meio na gravação que fiz em casa logo depois de ter escrito os Luádios. Esta peça repete seis vezes uma breve melodia modal, um pouco recitativa; suas aparições são introduzidas por um acorde cada vez um pouco diferente.


Julgo que esta citação explique minha intenção com As sacerdotisas. A parte em que falo sobre “idade da inocência em que ainda não se conhece a grande luz” se refere precisamente ao pré-cristianismo de que falei anteriormente.

O sétimo luádio, Estrelas, faz uma espécie de transição entre as seis primeiras, curtas, e a oitava (Amor), que dura aproximadamente oito minutos. Ela mesma tem, na gravação que fiz, quatro minutos e pouco, isto é, o meio termo. Sua harmonia estática traz uma mudança na atmosfera, que se torna ainda mais tranqüila. Agora é plenamente noite, e passo então a falar mais da esperança e do amor. O Messias ainda não veio, mas sabemos que vem e é impossível não ver nisto o amor infinito de Deus. Já não se lamenta, aqui.

Amor, finalmente, é a oitava e mais longa peça dos Luádios. Este amor é o amor divino e também o amor humano; o amor entre as pessoas e também das pessoas pelo seu Criador e pelas outras criaturas. É um amor às vezes um pouco sentimental, às vezes um pouco dolorido, mas é um amor certamente seguro. Os infinitos harpejos da peça indicam que este amor é um fogo que queima constantemente.

É uma das peças que mais me deram alegria em escrever, se não foi até hoje a que mais gostei de escrever.

A nona peça, Lua III, é curta novamente, mas muito lenta. Em seu final dissolve-se no agudo. Ela recita, muito lentamente, por três vezes, um trecho da monodia da primeira peça.

Consolo é o nome da décima peça. Assim como os Luádios são todos “noturnos”, Consolo é uma “consolação”, um título mais ou menos comum de peças para piano no século XIX. Esta peça continua e confirma a idéia de tranqüilidade, ainda de pré-cristianismo, mas em que já se superou o paganismo e a angústia.

A últimas três peças dos Luádios, Amor, Lua III e Consolo têm um efeito diferente se a série for ouvida inteira, pois Estrelas traz, como afirmei, uma nova atmosfera e uma nova disposição; uma transição entre a intranqüilidade das primeiras peças e a calma das últimas.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial