sábado, maio 17, 2008

Messiaen

Não há como não me lembrar de Messiaen, numa manhã na cantina do IA, quando ouço um pardal cantando sobre a mesa à qual estou sentado (eles chegam muito perto). Afirmo com segurança que ele canta em terças maiores. Não em movimentos de terça maior, mas cada “nota” que ele canta é uma terça maior. Os intervalos da melodia, em si, são disjuntos.

Gosto muito de Messiaen e das suas composições ornitológicas (e das outras também), e acredito e levo a sério sua intenção de reproduzir cantos de pássaros em música. Não tenho o mesmo ouvido que ele tinha, mas não tenho problemas em ouvir seus cantos de pássaros como cantos de pássaros. Os que não aceitam, arrisco dizer, falham em ao supor que tenha Messiaen colocado suas anotações como a única interpretação possível do que as aves cantam; não me lembro de ter lido nada que sequer insinuasse isto; mas, enfim, não li tudo que existe. Além do mais, não estou certo da necessidade de acreditar nos pássaros de Messiaen para apreciar sua música (mesmo que eu acredite e aprecie, e muito).

Também pode ser um problema afirmar algum gosto por cantos de pássaros, já que certa loucura pela originalidade pode acusar alguma falta de personalidade, ah, o pobre está querendo ser Messiaen. Se fosse assim, não poderíamos mais escrever peças para piano, já que Chopin escreveu várias e os pianistas já têm o que tocar. Não faz mais sentido preparar o piano, já que Cage o fez etc. etc. etc. Isto prejudica inclusive o conhecimento de outras pessoas que, mantendo o exemplo que estou usando, usam cantos de pássaros em seu trabalho de composição, seja de maneira totalmente diferente de Messiaen, seja num caminho parecido, o que me parece possível também. Pude ler, ainda um pouco por cima, a tese de uma compositora canadense que pesquisa este assunto e compõe com base nesses estudos. Seu trabalho junta alguma documentação até mesmo do século XVIII em que podemos ver interpretações de cantos de pássaros. Eu ia dizer “tentativas”, mas prefiro deixar de lado esta palavra que parece querer desprezar um trabalho supostamente primitivo feito em épocas de vida diferente, por pessoas que não eram eu, nem Messiaen, nem o nobre leitor tão dotado de paciência. O próprio Messiaen, apesar de ter um genuíno gosto pessoal pelas aves, conta ter recebido de Paul Dukas o conselho de ouvi-las, por serem “grandes mestres”.

Enfim, este é um texto sem clímax, espero que isto não decepcione muito.

Que isto tem a ver com a minha música? Nada, ou não muito. Falei indiretamente que gosto de cantos de pássaros, mas não falei se isso tem alguma presença no que eu escrevo. Não tem. Poderia ter, mas não é o caso. Uma série que escrevi em 2004, o Livro de Corujas, poderia sugerir algum parentesco, mas não há. São quatro peças que escrevi já sabendo que teriam nomes científicos de corujas, mas foram nomeadas depois. Escolhi corujas bonitas, de nomes bonitos, e procurei ver qual nome me parecia mais adequado para qual das peças. A mesma coisa com as borboletas do Livro de Borboletas (2003), que, até onde sei, não executam cantos que possamos anotar. Cinco anos depois, poucos dias atrás, descobri que Messiaen fala de borboletas no seu substancioso tratado, inclusive por causa dos ritmos não-retrogradáveis – ou talvez até mesmo só por isso, preciso ver de novo. Eu quase arriscaria dizer que é uma tarefa difícil encontrar alguma coisa interessante pela qual Messiaen não se tenha interessado.

E tudo aquilo sobre as cores. Não tenho a sinestesia de Messiaen, e não ouço cores nos acordes. Porém, simpatizo muito com esse pensamento. Cheguei a pensar que talvez não fosse bom ser sinestésico, já que seria mais uma regra na minha cabeça: numa determinada peça, certas possibilidades estariam excluídas porque são muito amarelas, ou porque têm manchas marrons. Mas pensar que os acordes são cores, mesmo que não específicas, me agrada muito, e sem dúvida agrada a muitos desde Debussy, ou mesmo antes, quem sabe. Não me parece tão importante ver o violeta onde Messiaen vê violeta, mas o simples fato de um compositor escrever certo trecho pensando que é violeta já me faz simpatizar muito com ele, porque sua música tem origem em algo que me agrada. Além disto, não vejo por que recusar seu simbolismo. Se aceito com tanta naturalidade que até certa época a música deve terminar na mesma tonalidade em que começou, posso aceitar com a mesma naturalidade que o acorde é vermelho com bordas cor-de-pérola.

O catolicismo de Messiaen merece um texto só para si, mesmo que cada pequeno item do que comentei mereça também um texto só para si. Portanto, não vou falar nisto hoje.

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