quinta-feira, julho 31, 2008

Valério Fiel da Costa, nº2

Meu texto anterior, publicado aqui num já longínquo 15 de Junho, fala de dois concertos do compositor paraense Valério Fiel da Costa a que eu havia assistido alguns dias antes.

Valério, tendo lido a "crítica" e visto que me agradara muito sua composição Matinais, enviou-me por e-mail um texto em que comenta sua peça. Com sua autorização publico o escrito.

P.S.: Este post está com data de Julho de 2008 porque me desagrada ver no blog um mês vazio... a verdadeira data de publicação deste post é 5 de Agosto de 2008. No mais agradeço sempre ao Valério por sua amizade e permanente atenção.

Schoenberg, o famoso compositor alemão criador do dodecafonismo, em suas aulas de composição, postulava que a criação musical é, essencialmente, repetição. Repete-se sempre e é graças a isso que conseguimos percorrer os labirintos da experiência musical sem nos perdermos. A repetição é o fio de Ariadne de toda experiência musical. Mas a repetição, ao passo em que resolve o problema da coerência, deixa descoberta a questão da diferença. É necessário variar para que a obra não perca o interesse, para que não soe redundante. Estamos entrando no reino da teoria da informação e transformando a arte num jogo de equilíbrio entre informação e redundância, entre novidade e conservação. Noção dura, apesar de correta, que merece um molho de subjetividade.

Compor é, essencialmente, engendrar um diálogo entre objetos de velocidades diferentes que buscam escapar e estratégias de contenção dos mesmos. O som quer viver, passar a existir num ataque abrupto, entrar em vibração e ressoar até sua morte. O compositor o freia, o territorializa, confere a ele uma forma dita coerente tomando posse dele. Fazemos o som soar para dele filtrar uma parte. John Cage denunciava isso como o pecado original da composição que impedia os sons de serem eles mesmos e ao fruidor de usufruir plenamente deles.

Mas foi o próprio Cage a definir, já nos anos 30, a repetição literal (proibida nas classes de Schoenberg as quais o compositor frequentava na época) como remédio para conceber uma música nova, desvinculada da tradição musical européia. Talvez por isso Cage seja citado aqui e acolá como pai do minimalismo dos anos 70 cujo mote principal era o desenvolvimento lento de pequenos fragmentos melódicos repetidos obsessivamente.

Curioso, porque Cage não estava interessado em desenvolvimento (na idéia de apresentar a música como espaço de representação de um discurso linear) e sim na noção de continuidade pura e simples: coisas seguem outras coisas, às vezes esbarram umas nas outras (que é uma maneira de dizer "harmonia"), e assim por diante. Estamos aqui num mundo sonoro onde a relação entre uma estrutura rígida, racional, e os sons que se expressam dentro dela, não é determinante do modo como a música vai soar no fim. Trata-se de uma metáfora do mundo à maneira como este se expressa a nossos sentidos. Para usar uma imagem do próprio Cage: uma fogueira que se acende em algum momento na terça-feira, torna-se acontecimento puro se nossa atenção estiver na contagem das horas, minutos e segundos. Música-acontecimento.

Mas onde está a repetição aqui? E, por consequência, onde está a coerência? A resposta é mais objetiva (sem deixar de ser complexa) do que meus colegas musicólogos gostariam, mas tem a ver com as escolhas do autor e dos intérpretes e com as idiossincrasias desses últimos. Não cabe aqui uma resposta mais completa que esta. Somos escravos de uma noção de música e o compositor, por maior que seja seu ódio a isso (e trata-se de um ódio muitas vezes por demais sincero), por maior que seja seu esforço em emancipar os sons dos limites do musical, ainda restarão sempre os intérpretes e os fruidores operando a remodelagem fatal re-territorializando-os à sua maneira. Isso não é uma queixa, apenas uma constatação. Somos todos filtros musicais em relação aos sons em nossa volta, quer estes sejam produto de modelagem humana, quer sejam massas desgarradas flutuando à deriva pelo ar.

A música pode ser definida como um punhado de objetos musicais dispostos aleatoriamente no tempo seguindo alguma diretriz formal que vai canalizando o fluxo. Se tratamos a forma de maneira caótica, convém equilibrar o todo impondo comportamentos invariantes aos demais parâmetros. Podemos escolher, por exemplo, um número limitado de vozes e definir para elas timbres invariantes obrigando os intérpretes a lidar com, digamos, dois violões e duas vozes. Podemos ainda definir que os intérpretes deverão repetir dentro de lapsos de tempo dados, pequenos fragmentos melódicos cuja razão (a consciência daquilo que se repete) seja oculta pela adição de uma segunda voz, dessincronizada, usando o mesmo timbre, usando outra melodia. Garantida a complexidade na textura e a desaparição da razão da repetição, acrescentamos outras vozes (literalmente vozes humanas) sobre o contexto. Temos uma canção agora. O protagonista é a repetição; mas onde ela está exatamente? Esqueça e relaxe.

Matinais é para ser tocada ao nascer do Sol assim como os cantos das matinas católicas. Trata-se de uma meditação sonora, uma espécie de mantra, que apropriadamente leva em seu corpo como fator emergente (surpreendente) um pequeno e forte poema de Vicente Franz Cecim Música com Sombras cuja função é gerar de repente a idéia de nexo. Não se trata disso, porém. É apenas mais um personagem flutuando junto comigo na aventura de fazer soar este fluxo, de pôr em movimento esta máquina.

[Valério Fiel da Costa]

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