sexta-feira, novembro 30, 2007

Novembro

Novembro não pode ficar vazio.

Não, não, não.

segunda-feira, novembro 26, 2007

A nona menor - II



Quando pensei em falar a respeito da nona menor lembrei-me do santista Almeida Prado e do alfabeto de acordes das suas Cartas Celestes. Conheci esses acordes ao ver sua tese de doutorado na biblioteca do IA da Unicamp. Seu nome é longo (Cartas Celestes: uma uranografia sonora geradora de novos processos composicionais).

Esse alfabeto de acordes é usado nas Cartas Celestes que vão de I a VI. Vários deles usam a nona menor. Escolhi quatro em que a presença deste intervalo é mais evidente. O primeiro é o acorde alfa: duas quintas em distância de nona menor:


Acorde alfa das Cartas Celestes de Almeida Prado.

E estes são os outros três:


Acordes épsilon, sigma e chi das Cartas Celestes de Almeida Prado.

Do mesmo compositor vem também uma idéia bastante interessante, que é a de oitavas sujas, como ele chama. Trata-se de usar uma melodia em oitavas em que algumas das oitavas não são oitavas - elas são nonas menores ou sétimas maiores.

Usei este recurso numa peça para piano chamada Turmalina, de 2005. Porém, não me lembro se ao fazê-lo eu já sabia do seu uso por Almeida Prado. Sei que li a esse respeito neste ano em que escrevo (2007), mas não é impossível que eu já soubesse mas me tenha esquecido completamente.

Isto realmente não é de muita importância, já que o verdadeiramente relevante é o próprio recurso e o seu resultado, que a mim me soa muito interessante. Pessoalmente eu não o chamaria de oitavas sujas, talvez por achar o adjetivo muito negativo... Mas não sei como o chamaria.

Almeida Prado, ao explicar este tipo de harmonização (ou até mesmo orquestração, eu arriscaria dizer) menciona a música árabe, com melodias em uníssono desprovido de uma maior precisão ocidental, e também cantos populares brasileiros, especialmente religiosos, muitas vezes acompanhados por instrumentos de sopro, em que também se ouve esse uníssono mais rústico.

    A fonte desses comentários de Almeida Prado é alguma (ou várias) de suas entrevistas concedidas e pesquisadores de sua obra. Possivelmente eu as poste com mais precisão num futuro terceiro texto sobre a nona menor.


Ali acima eu me referi a essa idéia como "orquestração", acrescentando que "arriscaria" usar esse nome. Faz sentido para mim porque, pensando nos acordes como timbres, montá-los é uma espécie de orquestração - e digo que estou pensando no piano, onde tudo continua sendo "orquestração" para mim.

    Neste post minha idéia é a de falar sobre a nona menor de um ponto de vista mais relacionado ao timbre, de fato. No primeiro eu me estendi, muito mais do que queria, em mostrar que ela aparece em Schoenberg. Nada disto é novidade - nem que ela está em Schoenberg, nem que ela é um timbre ou parte de timbres, ou parte de acordes. Mas o que ela tem de especial é que, dentro do temperamento de doze notas, ela talvez seja o intervalo "menos familiar". No mais, demora muito para aparecer a nona menor na série harmônica.

domingo, novembro 25, 2007

A nona menor - I



Uma vez, escrevendo num outro blog, ilustrei um post (sobre algo que não Música) com um acorde, este mesmo que está ali acima. Duas quartas em distância de nona menor - a descrição fria.

Um rapaz, leitor, que entendia de Música, me perguntou se aquilo era uma provocação.

Não me irritei, de maneira nenhuma, com o comentário... Sabia que ele era muito ligado à música mais antiga, do século XVIII para trás. Um acorde assim poderia mesmo soar (ou parecer) uma provocação. Entretanto, naturalmente não é.

A nona menor é um dos personagens principais da história da música atonal. Não que ela estivesse ausente da música anterior, claro. Ela aparecia basicamente como um acréscimo ao acorde de dominante com sétima menor - que se transformava, então numa dominante com sétima e nona menor, V7 9> ou D7 9>. Em geral tratada como apojatura; supunha-se que essa nona menor fosse descer e se transformar numa duplicação da fundamental. Em todo caso, já se conhecia seu poder expressivo.

Mas depois ela ganhou um papel de, digamos, "variação" da oitava, já que a oitava não era um tipo de sonoridade que agradasse muito os desbravadores do então virgem território atonal (acho que estou pensando em Schoenberg, mas também Berg e Webern). E, de fato, uma oitava em Schoenberg, dependendo de como viesse, poderia desmontar todo o edifício - não que eu obrigue alguém a pensar em edifício para considerar a música, mas é a comparação que imaginei agora.

E usei a palavra "sonoridade" para a oitava por pensar nela realmente como um timbre, mais do que um intervalo.

Mesmo assim Arnold Schoenberg me desmente no seu op.11, Três peças para piano (Drei Klavierstücke), de 1909. Todas as três peças apresentam numerosas oitavas.

A primeira só um pouco, na verdade: a nove compassos do fim (54-58), alguns esboços melódicos na mão esquerda. A onze do fim (53-54), o tema principal com as quatro primeiras notas em oitavas. Logo em seguida há também várias tríades (é possível identificar um SibM7+, um Dó#m, um MibM9, aqui sem nenhuma função, embora seja impossível não perceber a relação de terças - compassos 54-56).

A segunda, com um ostinato fá-ré, reforça o fá com a oitava mais grave.

A terceira, já desde o começo, usa muitas oitavas na mão esquerda.

Mas não é isto que interessa aqui. Na primeira destas três peças, há vários trechos calcados explicitamente sobre a nona menor. Dou como exemplo um compasso (35) em que a mão esquerda executa as seguintes notas:



Minha intenção não é analisar Schoenberg, nem de longe. Acabei de fato falando um pouco mais do que pretendia, mas tudo bem. As Seis pequenas peças para piano (Sechs kleine Klavierstücke), op.19, de 1911, já não trazem oitavas.

Webern, sim, mais ortodoxo, foge completamente às oitavas. Nele é que se pode encontrar um uso da nona menor como uma "substituta" consistente da oitava - e não só a nona menor, mas sua irmã, a sétima maior, muitas vezes por meio do acorde que Flo Menezes chama de arquétipo Webern: quarta + trítono, ou trítono+quarta, num acorde de três notas que perfaz uma sétima maior (como dó-fá-si ou dó-fá#-si).

Isso é o que Menezes chama de arquétipo Webern de primeiro tipo, já que ele identifica um segundo tipo constituído de duas terças menores em distância de sétima maior - novamente, a sétima maior.

    Estas menções a Flo Menezes se referem ao seu livro "Apoteose de Schoenberg". Por ter lido esta classificação (e nomenclatura) de acordes, acabei me acostumando a chamar de "Webern" o que ele chama de "arquétipo Webern de primeiro tipo".


*

O primeiro acorde deste post, o fá-sib com fá#-si, vem da sétima das minhas Gravuras, de 1997.

    Continuarei o assunto das nonas menores num próximo post, possivelmente já no próximo.

quarta-feira, novembro 21, 2007

O número 6 como denominador de fórmulas de compasso

No primeiro texto desta série sobre fórmulas de compasso irregulares tratei do número 3 como denominador. Neste post pensarei sobre o número 6.

O número 3 pressupõe uma divisão da semibreve em três partes iguais. Assim, o 6 nos faz dividir a mesma semibreve em 6 partes, dobrando aquelas 3 em que pensamos no texto anterior. Passemos já a exemplos:



Ouça aqui este exemplo (arquivo midi).

O compasso A é o 4/4 normal, preenchido por quatro semínimas que indicam seus quatro pulsos. No compasso B já temos uma quiáltera: as quatro semínimas são agora seis; seis no lugar de quatro, como indica a razão 6:4. Entretanto, é mais usual a notação do compasso C: cada metade do 4/4 é dividida em três partes, duas vezes 3:2.

Já neste compasso C (como no B) entendemos que cada figura vale um sexto do compasso. Portanto, temos aqui uma espécie de compasso 6/6, como indicado no compasso D. Assim já adquirimos a noção de que o denominador 6 indica que cada pulso do novo compasso equivale a um sexto do 4/4.

Seguem-se, então, os compassos E, F, G, e H, todos com denominador 6, variando seu número de tempos: 4/6, 5/6, 7/6 e 2/6. No compasso I voltamos a 4/4 para, na audição do midi, compreendermos a diferença entre os pulsos de denominador 4 e os de denominador 6.

A seguir, temos o mesmo exemplo mostrado acima; foi, porém, notado sem as fórmulas de denominador 6, mas, sim, com as mudanças de andamento aplicadas às formulas tradicionais.



*

A partir desta sistematização imaginei um pequeno e simples exercício que pode ajudar a tornar mais íntima a relação com uma música que alterne os denominadores 4 e 6. Ei-lo a seguir:



Ouça aqui (arquivo midi).

Inúmeras variações podem ser imaginadas. Como se pode observar aqui, usei sempre:

4/4 - 4/6
3/4 - 3/6
5/4 - 5/6

Depois de adquirida fluência com este padrão, é interessante mudar para algo assim:

4/4 - 5/6
3/4 - 4/6
5/4 - 3/6

Eis aqui o mesmo exercício, usando fórmulas tradicionais, com indicações de alteração do andamento:



*

A série ainda continua; se não no próximo texto, mais adiante.

domingo, novembro 18, 2007

O número 3 como denominador de fórmulas de compasso

    Este texto é o primeiro de uma série (que não sei quantos terá...) sobre fórmulas de compasso irregulares. Há vários aspectos que serão considerados nos textos subseqüentes que não foram abordados neste primeiro. Trata-se de uma tentativa de pensar tais fórmulas sem discutir muito se elas são ou não necessárias.


As fórmulas de compasso comumente utilizadas se servem, no seu denominador, dos números 1, 2, 4, 8, 16, 32, 64 etc., ou seja, potências de 2. Claro que é possível estender a lista, mas para fins práticos não se costuma ir muito longe. O máximo que vi foi o 32, que pode ser encontrado em um "clássico" do século XX como Webern. Quanto aos números mínimos, gosto de usar o número 1 como denominador, o que já fiz várias vezes (compassos de 1/1, 2/1, 3/1).

Uma possibilidade, já considerada, explicada e utilizada, é a de números diferentes no denominador. Diferentes das potências de 2, diferentes do 1, 2, 4, 8, 16 etc. Parece que o compositor americano Henry Cowell já discorre, no seu livro New Musical Resources, sobre este recurso. Entretanto, não conhecendo ainda o livro, não sei até o momento que abordagem ele faz.


    Meu amigo Bernardo aponta que também Hindemith abordou estas fórmulas irregulares no seu conhecido livro de adestramento para músicos.



Um dos compositores mais conhecidos, talvez o mais conhecido, a usar estas fórmulas de compasso diferentes, é o inglês Brian Ferneyhough. Não é raro encontrar em suas partituras fórmulas como 5/12, 3/10. Em suas peças este é mais um aspecto da complexidade rítmica, que no mais envolve muitas quiálteras e quiálteras dentro de quiálteras.

Meu desejo aqui é refletir sobre as possibilidades de modo bastante simples, ou melhor, começando do mais simples possível. Portanto desta vez vou considerar apenas o denominador 3, isto é: fórmulas de compasso como 4/3, 2/3 e assim por diante.

Toda fórmula de compasso, conforme as usamos, é também uma fração que indica quanto de uma semibreve aquele compasso vale. Isto é: um 4/4 indica que o tamanho do compasso equivale a quatro quartos (um inteiro) de uma semibreve. 2/4 indica que o compasso vale dois quartos (metade) de uma semibreve. Este raciocínio é que se deve ter em mente quando se imagina uma fórmula diferente.

Uma fórmula 3/3 equivale a três terços, ou seja, um inteiro, de uma semibreve. Portanto, ele é igual a um 4/4 ou 2/2 ou 1/1. Mas sugere que a semibreve é dividida em três partes iguais, numa figura que, em 4/4, seria uma quiáltera. O exemplo a seguir nos ajuda a entender:



O compasso A é um 4/4 comum, preenchido com quatro semínimas indicando seus quatro tempos.

O compasso B é um 4/4 também; porém, está divido em três partes iguais, o que é uma quiáltera. A fração 3:2 explica que temos três figuras no lugar de duas; isto é: devíamos ter duas mínimas, mas excepcionalmente temos três.

O compasso C é rigorosamente igual ao compasso B. Porém a fórmula, sendo 3/3, já indica que a semibreve (sempre nosso ponto de referência) será ordinariamente dividida em três partes. Portanto, não há necessidade de indicar quiáltera, pois ela não existe.

O compasso D traz a fórmula 2/3. Ele tem dois tempos, sendo que cada um vale um terço de uma semibreve. Isto é: ele se compõe de dois pulsos, cada um igual a cada um dos três do compasso C (3/3). Assim também o compasso E, em 4/3: compõe-se de quatro pulsos, cada um igual a cada um dos pulsos do compasso C.

Na prática, o compasso E é uma desaceleração do compasso A. E estas fórmulas com números diferentes só fazem sentido nesse contexto de comparação com as fórmulas convencionais, ou melhor: só fazem sentido quando estão confrontadas com outras fórmulas de numeradores diferentes. Não faz sentido escrever uma peça inteiramente em 4/3 (a não ser por razões simbólicas...), já que é a mesma coisa escrever em 4/2, ou então em 4/4.

Mesmo que mude o número de tempos, se o denominador for o mesmo a irregularidade não é necessária. Não é preciso escrever, por exemplo, uma seqüência 5/3 - 4/3 - 5/3 - 2/3 - 7/3. Basta escrever 5/4 - 4/4 - 5/4 - 2/4 - 7/4.

Em resumo, um 4/3 só faz sentido se o "pulso principal" for o de um 4/4, ou 3/4, ou 4/2, ou qualquer outra fórmula que não tenha 3 no denominador.

Certo. Além disto tudo, se um denominador 3 significa uma modificação do pulso, podemos concluir também que esta mudança poderia ser notada simplesmente como uma mudança metronômica, sem dúvida nenhuma. Em geral esta opção seria melhor no que se refere à leitura. Por isso considero prudente, por exemplo, numa peça para orquestra ou mesmo de câmera, preferir as mudanças de andamento às fórmulas "exóticas". Evita aborrecimentos de ordem prática.

Apesar disso, não me parece inútil a tentativa de teorizar um 4/3. Até hoje não usei este tipo de fórmula, mas é possível que em algum momento use. Não me parece absurda numa partitura para piano solo, por exemplo.

Um novo exemplo abaixo ajuda, assim penso, a entender mais um pouco. Começando em 4/4, os compassos seguintes usam 2/3 e 4/3, voltando no final a 4/4, de maneira que o contraste entre as fórmulas com 4 e as com 3 ficam mais audíveis.

Clique aqui para ouvir o midi com o próximo exemplo.



Abaixo, o mesmo trecho escrito com fórmulas convencionais e mudança metronômica.



Assim é possível usar, por exemplo, uma alternância 4/4 - 4/3 tanto como aceleração como desaceleração, dependendo das figuras usadas. Uma oposição de semínimas em 4/4 com semínimas em 4/3 soará como aceleração; uma oposição de semínimas em 4/4 com mínimas em 4/3, como desaceleração.

*

Quando procuro entender estas fórmulas de compasso e penso por algum tempo nelas, tenho às vezes a sensação de que é muita dificuldade, ou então de que é dificuldade demais para pouco resultado, ou então que anotar as mudanças de andamento (e manter as fórmulas convencionais) é muito mais simples.

Não digo que nada disso seja verdade. A execução de uma peça que contenha 4/3, 2/3, 5/3 requer estudo prévio (mas qual peça não requer?...) no sentido de compreender estas particularidades rítmicas. Entretanto, mudanças de andamento também exigem este tipo de estudo de uma obra. Em certas peças do século XX chegou-se ao ponto de se fazer uso de click tracks: os intérpretes se servem de um fone de ouvido no qual ouvem o pulso da obra com todas as variações programadas.

Neste sentido não seria tão longe da realidade, assim penso, tentar desenvolver um solfejo, ainda que simples, destas fórmulas irregulares. Mesmo que se recorra ao auxílio de arquivos gravados, o que, a propósito, acho muito bom.

*

Em futuros posts refletirei sobre o uso de outros números como denominadores para fórmulas de compasso. Mais especificamente, tratarei do número 6 no próximo texto.

quinta-feira, novembro 15, 2007

Ando devagar - II

Mais uma peça popular para a coleção das canções sem V – I é a bela Green eyes, do Coldplay. Mais uma vez (como Songbird que mencionei no outro post) eu a conheço por ser muito ouvida pela minha irmã.

Green eyes usa basicamente I, V e II. I – V acontece bastante, mas não V – I, como disse.

Devo confessar algo: ouvi algumas vezes esta música, a vez mais recente foi já há alguns dias; mas não a ouvi para escrever o post. Ela realmente fica demais na cabeça, e se eu a ouvir agora ela vai ficar tocando por dias, e eu gostaria de evitar isto. Por esta razão apenas conferi alguns sites de cifras para pensar apenas nos acordes.

Alguns sites dão cifras simples; o primeiro que vi se restringe a A, E e Bm (respectivamente o I, o V e o II de que falei). Alguns incluem uma décima primeira nesse II (Bm11). Perdoem-me, não vou confirmar na gravação original agora... talvez uma outra hora eu volte ao assunto.

Mas o que importa é que não tem V – I, então é mais uma para a até agora pequena coleção.

E por falar em ficar com música na cabeça, fiquei com duas nos dias recentes. Duas que andei ouvindo da Agnetha, mais conhecida como “a loira do Abba”, de sua carreira solo cantando em sueco antes da banda. As canções se chamam Nu ska vi opp, opp, opp e Försonade. Ambas têm numerosos V – I... A segunda é uma dessas baladas dos anos 60 em compasso 6/8, das quais algumas são bonitas e outras não; Försonade é belíssima. Nu ska vi opp, opp, opp também é bonita e deve haver nela algo de meio folclórico. Minha falta de elementos para analisar música popular fica evidente aqui. É rápida, alegre e em compasso 3/4, o que refresca os ouvidos da eterna marcha binária da música pop. No clipe, Agnetha, com uns dezoito anos, anda com uns aviadores, até partir pilotando um avião no fim da música que dura um pouco menos que dois minutos.

Ah, sim, e antes que me esqueça, preciso anotar uma das regras que coloquei para constituir esta coleção de canções sem V – I: não vale música de harmonia complexa como a de Tom Jobim (ou como é a de Tom Jobim em geral), embora eu talvez quebre a regra de vez em quando se pensar em alguma canção particularmente bonita. Mas a idéia é pensar em canções que usem acordes simples, tanto nas funções como na estrutura (número de terças), ou que tenham esta “simplicidade” em pelo menos um desses elementos.

quarta-feira, novembro 07, 2007

Ando devagar - I

Evitar a cadência V - I é um recurso interessante para variar um pouco a harmonia quando se faz música tonal. Não é evidentemente nenhuma novidade, e é das primeiras coisas que se apontam em Wagner quando se analisa sua música.

Trata-se também de uma possibilidade de dar uma atmosfera mais modal à música. Acontece muito em Debussy, como não poderia deixar de ser.

Recentemente andei prestando atenção a isso também na música popular. Notei que na conhecida canção Tocando em frente, de Almir Sater e Renato Teixeira, acontece exatamente isso. Nunca vem um V - I. E a música já começa no V, desce para IV e então vai para I.

I vem sempre do IV ou então do II, como mais adiante, em que se alternam algumas vezes IV e II.

A seqüência V - IV - I, tocada duas vezes, é a primeira parte. A alternância II - IV - ... - I é a segunda.

Na passagem da primeira parte para a segunda, aparece V. Nos sites de cifras que consultei a música termina sempre com V, o que pode ser mudado conforme o arranjo (e fazer a canção terminar em I); mas a conclusão em V é muito mais interessante.

*

Não sei se esta música é muito conhecida em outras regiões do Brasil, tendo a pensar que seja mais popular nos estados caipiras. É uma bela canção com uma bela letra. O título deste post vem do seu início ("Ando devagar porque já tive pressa...").

*

Já havia pensado em escrever sobre Tocando em frente quando ouvi minha irmã ouvir, mais uma vez, Songbird, do Oasis. É harmonicamente mais simples que Tocando em frente (que já é simples), e não tem, nunca, V - I. Ela é, basicamente, uma alternância de I e VI; e me soa como uma recitação ou cantilação um pouco mais desenvolvida.

domingo, novembro 04, 2007

Os Luádios

No meu texto anterior cheguei aos meus Luádios (1998). O escrito ficou um pouco cheio de referências um pouco áridas e técnicas, ainda que talvez úteis (pelo menos para mim), de modo que desejo agora abordar a série de maneira um pouco mais “poética”, por assim dizer.

Não sou lá tão afeito a inventar palavras novas, mas ao dar nome a esta série foi exatamente o que fiz. Luádios é uma junção de Lua com Prelúdios. E a Lua, como de outras milhares de obras na história da humanidade, é um tema, ou o tema, dos Luádios.

Todos eles se referem sem dúvida a cenas noturnas. Às vezes penso deles como “dez noturnos”, usando a mesma designação que nos chegou de John Field por meio de Chopin. Não acredito que meu impulso tenha sido muito diferente do de Chopin. A linguagem é outra, mas imagino que tenha sido levado a escrever estas peças por motivos parecidos que levaram o polonês a compor os seus noturnos.

O tempo passa, sim, conforme eles se sucedem, porque no segundo luádio, Movimento das folhas das árvores, ainda me parecia ser o final da tarde. E têm-se ainda Luzes vermelhas e alaranjadas, título da terceira peça. Estas luzes são luzes de um pôr-do-Sol. Sem dúvida penso num ocaso outonal, talvez invernal, que são épocas no meu gosto mais bonitas.

Mas, antes que me esqueça, a atmosfera do segundo luádio é já misteriosa, o vento é frio e faz as árvores balançarem muito.

No quarto luádio, Lua II, talvez já seja noite. A ele se seguem os Lamentos, que imagino serem vozes tristes e angustiadas no meio da noite. Lamentam-se porque lhes falta algo. E o que lhes falta é a luz do espírito, não a luz do dia, que já possuem (embora não neste momento). A noite, embora bela, faz lembrar que ainda não possuem a iluminação espiritual. Trata-se de uma época pré-cristã; o Verbo de Deus ainda não encarnou, ainda não veio trazer a salvação. Este pré-cristianismo é a época em que acontece a “cena” de todos os Luádios.

E estes lamentos indicam não só a espera angustiante pelo Messias, mas também a consciência de que ele ainda nos falta. Não existe aqui um paganismo cheio de orgias e indiferente a qualquer coisa do espírito. Fosse assim, não se lamentaria por nada.

Aos Lamentos se sucede a sexta peça, intitulada As sacerdotisas. Transcrevo aqui o que escrevi, uma vez, sobre esta composição e seu título.

Numa série para piano chamada Luádios, que escrevi em 1998, há uma peça, a sexta, chamada As sacerdotisas. Hoje este título me soa muito pagão. Já pensei em mudá-lo, e até haveria razões para fazê-lo sem trair minha própria intenção; mas agora penso desnecessário.

Trocar o título não iria contra meu propósito original porque, eu me lembro, pensei em dançarinas vestidas de branco. Devo ter escolhido “sacerdotisas” como nome provavelmente por a sua dança me haver parecido muito ritual, porque lenta e misteriosa; e lenta e misteriosa é a composição.

Tais “sacerdotisas” não oferecem sacrifício nenhum, não honram nem adoram nenhuma divindade. Elas nem mesmo são sacerdotisas. Mas o nome me agrada por evocar algo muito antigo, ancestral, cheio de mistério, um tanto primitivo. Uma espécie de idade da inocência em que ainda não se conhece a grande luz; algo como uma enigmática noite de esperança em que, entretanto, já se conhece o amor (Amor é o nome da oitava peça) e o consolo (Consolo é o nome da décima peça).

(...)

Nos Luádios eu imito meu compositor talvez favorito, Debussy, no modo de escrever os títulos de cada peça; faço-o como ele fez nos seus Prelúdios: escrevo os nomes no fim. Além disto, desconfio que As sacerdotisas seja uma descendente perdida de Danseuses de Delphes, mesmo que musicalmente elas não tenham praticamente nada a ver. Deve ser mais pelas dançarinas mesmo.

Por falar na parte musical, As sacerdotisas dura pouco mais de um minuto e meio na gravação que fiz em casa logo depois de ter escrito os Luádios. Esta peça repete seis vezes uma breve melodia modal, um pouco recitativa; suas aparições são introduzidas por um acorde cada vez um pouco diferente.


Julgo que esta citação explique minha intenção com As sacerdotisas. A parte em que falo sobre “idade da inocência em que ainda não se conhece a grande luz” se refere precisamente ao pré-cristianismo de que falei anteriormente.

O sétimo luádio, Estrelas, faz uma espécie de transição entre as seis primeiras, curtas, e a oitava (Amor), que dura aproximadamente oito minutos. Ela mesma tem, na gravação que fiz, quatro minutos e pouco, isto é, o meio termo. Sua harmonia estática traz uma mudança na atmosfera, que se torna ainda mais tranqüila. Agora é plenamente noite, e passo então a falar mais da esperança e do amor. O Messias ainda não veio, mas sabemos que vem e é impossível não ver nisto o amor infinito de Deus. Já não se lamenta, aqui.

Amor, finalmente, é a oitava e mais longa peça dos Luádios. Este amor é o amor divino e também o amor humano; o amor entre as pessoas e também das pessoas pelo seu Criador e pelas outras criaturas. É um amor às vezes um pouco sentimental, às vezes um pouco dolorido, mas é um amor certamente seguro. Os infinitos harpejos da peça indicam que este amor é um fogo que queima constantemente.

É uma das peças que mais me deram alegria em escrever, se não foi até hoje a que mais gostei de escrever.

A nona peça, Lua III, é curta novamente, mas muito lenta. Em seu final dissolve-se no agudo. Ela recita, muito lentamente, por três vezes, um trecho da monodia da primeira peça.

Consolo é o nome da décima peça. Assim como os Luádios são todos “noturnos”, Consolo é uma “consolação”, um título mais ou menos comum de peças para piano no século XIX. Esta peça continua e confirma a idéia de tranqüilidade, ainda de pré-cristianismo, mas em que já se superou o paganismo e a angústia.

A últimas três peças dos Luádios, Amor, Lua III e Consolo têm um efeito diferente se a série for ouvida inteira, pois Estrelas traz, como afirmei, uma nova atmosfera e uma nova disposição; uma transição entre a intranqüilidade das primeiras peças e a calma das últimas.

sexta-feira, novembro 02, 2007

Minimalismo e os Luádios

Os assuntos acabam por se ligar e ramificar-se e descobrimos que talvez se relacionem, todos, entre si. No meu primeiro post falei sobre La cathédrale engloutie e, por ser esta peça uma das minhas influências principais, as minhas influências principais acabaram por se tornar o assunto do que venho escrevendo.

E parece sempre faltar a explicação de mais alguma coisa para que se tenha um quadro um pouco mais completo. E coisas diferentes umas das outras vêm se juntar. De modo que, no fim do meu segundo post, citei outras influências e, entre elas, o minimalismo. Vejo-me, então, forçado a colocar Debussy e o minimalismo juntos, embora a partir de agora este último ganhe mais destaque pelo simples fato de que ser um minimalista (ou pós-minimalista) faz sentido, mas ser um “debussysta” não – e imagino aqui um “debussysta” como alguém que tenta imitar ou copiar o estilo do grande compositor. Ele é, sim, um grande modelo para mim, um sublime modelo, poderia dizer, e o considero um mestre, sem dúvida.

Foi em 1997, mesma época em que havia há pouco começado a estudar La cathédrale engloutie, que descobri a existência da música minimalista. Foi por meio do programa Música discreta, na Rádio Cultura de São Paulo. Eu o ouvia à meia-noite das terças-feiras, no escuro, como convinha. Foi uma descoberta incrível. Se naquela peça de Debussy eu via um tempo diferente, ainda mais diferente via o tempo destas composições transmitidas pelo programa. Fiquei muito impressionado. O tempo ia embora, não se pensava mais nele, não se pensava mais em nada. Vários compositores eram apresentados, mas o único cujo nome guardei, na época, foi Philip Glass. Hoje sei da existência e dos nomes dos outros, mas na época não os memorizei. De Glass fiquei muito impressionado com a Música em Doze Partes [Music in twelve parts].

Procuro pensar aqui no que me lembro, não no que li depois: a Música em doze partes era bem longa; depois de um bom tempo, em meio à peça, o locutor dizia: “Música em doze partes... parte três...”. Tinha um prazer incrível em ouvir aquela música. Poucos meses antes eu tinha conhecido as ilhas de Angra dos Reis, e o mar era a imagem que, dentro da minha mente, acompanhava a audição daquela obra.

Agora, sim, o que li depois. Philip Glass escreveu uma obra chamada Música em doze partes porque havia doze partes instrumentais. Ao mostrá-la a alguém, foi-lhe dito: “e as outras onze?”. Assim lhe ocorreu a idéia de realmente escrever outras onze seções.

No mesmo programa lembro-me de uma vez ter sido mostrada uma obra que incluía, em sua instrumentação, piano preparado, o que me leva a crer que tenha sido Tabula Rasa, de Arvo Pärt. Este compositor também entrará aqui na nossa história, embora não neste post. Eu só o conheci depois, mais ou menos um ano mais tarde.

Entretanto levou um tempo para que eu “assimilasse” o minimalismo para efeitos da minha própria composição. Pouco depois de conhecer esta linguagem, por assim dizer, ainda escrevi um Trio de Cordas intensamente atonal e intensamente politonal, diria até que no limite do cacofônico em certos momentos (penso em algumas das partes politonais, na verdade, meu atonalismo não soava assim tão mal). Isto foi em 1997. No mesmo ano, escrevi as Gravuras, para piano (a princípio eram seis peças, depois sete). São peças muito curtas (as mais longas têm um minuto e pouco) que fazem uso de universos harmônicos variados lado a lado (diatonismo, tonalismo, atonalismo, modulações repentinas) e também de estados de espírito variados, mesmo dentro da mesma peça.

No ano seguinte escrevi também uma Toccata para piano (que nada tem das características tradicionais do gênero toccata; trata-se de uma peça em cinco partes, como se fossem as Gravuras, mas tocadas sem interrupção) que junta alguns materiais escritos livremente com atonalismo livre, algum dodecafonismo e esquemas mais ou menos seriais não-dodecafônicos. Há numerosos intervalos pontiagudos, muita dissonância e um pouco de violência.

Chegou Novembro deste ano de que falo, 1998, e comecei a composição de uma série de peças para piano em que finalmente surgiu alguma influência de música repetitiva e, ao mesmo tempo de Debussy também. São os Luádios, dez peças para piano. Os seus títulos, na partitura, são colocados no fim, em vassalagem e reverência ao grande francês.

Mesmo nesta coleção há alguns trechos atonais, mas já são muito diferentes. Eles se encontram principalmente na terceira peça (Luzes vermelhas e alaranjadas) e na quinta peça (Lamentos). No primeiro caso me pareceu muito apropriado usar as tradicionais dissonâncias de sétima maior e nona menor para exprimir a sensação de raios vermelhos e alaranjados do Sol chegando os olhos e os fazendo quase fechar.

A segunda peça (Movimento das folhas das árvores) usa desde o início harpejos bitonais, típicos de Debussy. No início aparecem sol maior e mi bemol menor, e o último acorde da composição é sol maior (na mão esquerda) e mi bemol maior (na mão direita). Por algum motivo associei este acorde à cor verde (das árvores), embora totalmente desprovido de sinestesia; muito provavelmente uma associação mais simbólica. Os harpejos, por outro lado, são meu meio de evocar o movimento das folhas das árvores provocado pelo vento.

Por escrever, nesta segunda peça, cada nota dos harpejos separadamente, usei nelas muitas fusas e mesmo semifusas, o que não é comum na minha música. A fórmula de compasso é 4/8. É uma exceção nos Luádios, que de resto usa fórmulas como 9/4, 4/2, 3/1 e 1/1, em que, também pela lentidão dos andamentos, predominam as figuras de maior valor.

A oitava peça, Amor, é inteiramente constituída de harpejos. Não é, entretanto, minimalista. Existe uma idéia de progressão harmônica nela inteira, o que a faz não ser minimalista não obstante seu caráter repetitivo. Esta distinção é muito importante, já que o minimalismo em si se caracteriza por algum processo de repetição e mutação gradual das figuras.

Por este motivo costumo considerar que a sétima peça, sim, se aproxima mais do minimalismo; seu nome é Estrelas e se centra nitidamente em mi, em sua primeira metade usei um modo que parece mais ser mi frígio, embora use a tríade do primeiro grau como acorde maior; e, na segunda, aparece o quinto grau como menor, o que caracteriza um mixolídio.

Na primeira parte alternam-se dois acordes, lentos e sustentados. O primeiro é mi maior com a quinta fá-dó no baixo; o segundo é o mesmo mi maior com a quinta mi-si. Estes dois acordes se repetem várias vezes, entremeados por breves intervenções, chamados, no agudo, sempre com as mesmas notas, com algumas variações rítmicas. Na segunda parte há apenas grandes harpejos, do extremo grave ao extremo agudo do piano, enunciando os acordes de mi maior, lá maior, sol sustenido menor e si menor. Esta peça poderia ainda ser considerada “minimalista” sob o ponto de vista de “material mínimo”, ainda que não utilize processos como os de Glass e Reich (nos anos 60) nem técnicas derivadas deles.

Das dez peças três se chamam Lua (a primeira, a quarta e a nona), devidamente acompanhadas de algarismos romanos: I, II e III. Nas três uso monodias. Aqui entra de novo Debussy, de quem numerosas peças usam monodia. Em primeiro lugar, The little shepherd. Outras, ainda, são Bruyères, La fille aux cheveux de lin, Canope (em acordes), Voiles (em terças), La danse de Puck, todas para piano; e L’après-midi d’un faune, para orquestra.

Nos meus Luádios, Lua II e Lua III (quarta e nona peças) usam monodias em que o pedal fica abaixado, fazendo os sons se misturarem; gosto muito deste recurso e o utilizo desde então com muita freqüência. A meu ver é um dos “instrumentos” de que o piano é capaz. Em Lua I (primeira peça), não há pedal, mas logo antes da monodia há um ataque, em sfz, de uma tríade de fá sustenido maior, sua ressonância continua durante a melodia.

Para que vejam de modo mais organizado os nomes das peças, transcrevo-os aqui:

I. Lua I
II. Movimento das folhas das árvores
III. Luzes vermelhas e alaranjadas
IV. Lua II
V. Lamentos
VI. As sacerdotisas
VII. Estrelas
VIII. Amor
IX. Lua III
X. Consolo

A série foi escrita em aproximadamente um mês, ou talvez um pouco mais, de Novembro a Dezembro de 1998.

Vejo que duas delas ficaram sem descrição nenhuma: As sacerdotisas e Consolo. A primeira faz ouvir seis vezes sempre a mesma melodia, precedida em cada vez por um acorde um pouco diferente. Consolo, escrita em fórmula de compasso 1/1, é inteira em semibreves; no agudo se tem sempre, sempre, si-dó#, em harmonizações variadas. Seu último acorde harmoniza o dó# como um acorde de si maior com sétima maior e nona, de modo que na mão direita se tem o mesmo fá sustenido maior que inicia os Luádios.